Un (fair) share: um grande erro
Enviado em 02.05.2024

Un (fair) share: um grande erro

Gigantes de telecomunicações buscam uma remuneração adicional pelo uso da rede, sob a justificativa de compartilhamento de custos com provedores de conteúdo e […]

Gigantes de telecomunicações buscam uma remuneração adicional pelo uso da rede, sob a justificativa de compartilhamento de custos com provedores de conteúdo e aplicações. A iniciativa afeta todo o ecossistema digital e coloca em risco a internet tal como a conhecemos.

A ausência de retorno de investimento que sustenta, teoricamente, a alegação das operadoras gigantes para legitimar a cobrança de tráfego originado sobre as redes não significa, necessariamente, falha de mercado ou externalidade negativa que deva ser endereçada pelo regulador. A intervenção regulatória deve ser mínima, no sentido de assegurar a competição justa e equilibrada no mercado, de modo responsivo a eventuais abusos de poder de mercado e dificuldade de acesso a insumos essenciais e escassos.

O ecossistema digital se alimenta das duas pontas, conteúdo e conectividade, e há uma interdependência sinérgica que deve ser acompanhada pelo regulador, mas sem intervenção ex-ante, especialmente no que tange a modelos de remuneração de tráfego de origem. A intervenção regulatória pensada no sentido de se adotar mecanismos de remuneração de redes não é adequada à dinâmica do mercado, mesmo que o regulador tenha por objetivo garantir o bom desempenho das redes. Mais ainda se considerar que, embora a demanda de dados seja crescente, a infraestrutura de redes ópticas já acompanha as projeções de incremento de tráfego e que, também, o volume de custos atuais associados o aumento de tráfego é pequeno se comparado aos demais custos de gestão, compartilhamento de uso de postes e manutenção da própria operação.

Dito isso, reiteramos: a Abrint é contrária ao estabelecimento de política de fair share e entende que a própria nomenclatura não traduz o cerne das discussões. Do ponto de vista técnico, o mais adequado seria a utilização do termo SPNP – Sending Party Network Pays, para retomar os debates de cobrança de tráfego de origem que transita sobre as redes de telecomunicações. O SPNP é uma forma de regulação de preço que se aproxima de efetivo subsídio cruzado entre redes e conteúdo. O impacto desta linha de regulação é absolutamente temeroso para o funcionamento da lógica de trânsito e peerings, remetendo ao aumento significativo de preços de trânsito e da dependência de rotas internacionais, resultando em piora da qualidade dos serviços e, potencialmente, aumento de preços ao usuário final.

As sessões BGP que hoje garantem o acesso livre aos mais diversos conteúdos na internet, passariam a representar 8.957 camisas de força sobre os sistemas autônomos nacionais, resultando em degradação de acesso no Brasil. As discussões sobre a atualização normativa da LGT e o aprimoramento dos deveres das empresas de conteúdo e heavy users podem e devem ser feitos, sem que se confunda com regulação de preços. A Abrint entende que, mais do que nunca, o princípio da neutralidade deve ser respeitado e que o SPNP é uma forma artificial de intervenção regulatória capaz de prejudicar o fluxo de acesso livre aos conteúdos a partir de discriminação de preço, pela empresa de telecomunicações, não ajustada com a origem do tráfego. Há experiências internacionais que demonstram a ineficiência regulatória do SPNP e a repercussão negativa sobre a disponibilidade de conteúdo, em especial na Alemanha e na Coreia do Sul. Quanto maior o número de sistemas autônomos na região, mais danoso é o impacto.

Não há evidências que sugiram que as metas de qualidade e aumento de cobertura poderiam ser alcançadas por taxas de rede. Importante também diferenciar as evidências reais por de efeitos de rede indiretos e não abordar o tema a partir de uma definição de mercado de dois lados. As transferências cruzadas de dinheiro não conduzirão a condições mais acessíveis e esse mecanismo poderá distorcer a concorrência no setor e levar os grandes operadores a favorecer e dar prioridade aos grandes geradores de tráfego em termos de capacidade, promovendo práticas discriminatórias e desfavorecendo os médios e pequenos ISP. Qualquer intervenção regulatória (especialmente com preços) requer uma justificativa adequada, baseada em evidências, e não se sustenta em interesses comerciais.

Além disso, o mercado de dois lados refere-se a uma situação em que uma empresa atua como intermediária entre dois grupos de interdependentes, tais como compradores e vendedores. Embora muitas vezes associado ao poder de mercado, nem sempre é assim. Nesses mercados, o foco deve ser a análise do poder de barganha e a otimização de preços, em vez de assumir automaticamente a presença de poder de mercado ou discriminação de preços prejudicial. No cenário de debate do fair share, estamos lidando com um efeito de rede indireto, que adiciona complexidade à análise. Aqui, a necessidade de um serviço está diretamente ligada ao comportamento do usuário, e adicionar novos usuários gera valor adicional para os usuários existentes e para a própria plataforma. Essa dinâmica significa que a regulação tradicional de preços, focada na escassez e no poder de mercado, pode não ser diretamente aplicável. Em vez disso, a ênfase deve ser na análise do poder de barganha entre a plataforma e os usuários, bem como entre os próprios usuários. A otimização de preços deve incentivar a participação e o crescimento da rede. Assim, a regulação tradicional de preços pode não ser a abordagem adequada para esse tipo de mercado, pois o valor da plataforma está inerentemente ligado à expansão do usuário, e não à exploração da escassez ou do poder de mercado. A regulação deve considerar a intrincada dinâmica das dos efeitos de rede indiretos e promover um ambiente competitivo que beneficie os usuários, a sociedade na totalidade e assegure a internet como espaço livre e aberto.

Cristiane Sanches, Conselheira da ABRINT – tem vasta experiência profissional em política regulatória de telecomunicações e tributação. Também é membro do Conselho do LAC-ISP.

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